sábado, 5 de maio de 2018

Círculo veneno

--- Faz já um tanto considerável de tempo desde que tive a chance de colocar - como agora - a caneta entre meus dedos. Nesse meio tempo, muito se passou no mundo por fora de minha pele e duas vezes mais por dentro dela. E meus olhos envelheceram; tornaram-se duros (mesmo!) por dentro. E apenas lembram-se da natural leveza quando eu conscientemente os faço dar conta da suspensão temporária dos perigos.
--- Faz também já algum tempo desde a última vez que me permiti estar sozinha.
--- Passei anos de muito medo, os quais se materializaram nas manchas de minha pele, não mais sem máculas, mas cheia das cicatrizes azuis do veneno. E apesar disso, os dias nem por um segundo deixaram de se desenrolar: comprido novelo, que forma os padrões mais difíceis e intrincados.
--- E tudo está bem, a não ser as memórias que vêm à tona, como erupções cutâneas, e uma espécie estranha de descompasso entre o que é e o que jamais chegou a ser. Erupções e descompasso são como cortinas (?), feitas de um tecido que nenhuma outra pessoa é capaz de ver, ainda que honestamente acreditem em suas existências e mesmo que sobrem palavras para dar conta do fenômeno.
--- Ocorre assim: o grude da realidade impregna os corpos. É também uma espécie de doença, contra a qual sempre lutei, movendo forças sutis, crendo no impossível. E o que eu queria era entender, pois talvez haja algo que não esteja vendo. Algo além (assim espero) da dureza das coisas duras. E desnecessárias. Além das teorias explicativas dos livros, bem como da coreografia de gestos, talas e membranas permeáveis, a partir das quais esquecemos a fluidez do corpo.
--- Houve um tempo em que não me dotavam capaz desses significados amargos, de modo que jaziam eles escondidos na semi-consciência de uma menina muito afeita a metáforas.
--- Eu agora, contudo, tomo toda a responsabilidade pelo fel que existe nessas palavras, porque o fel existe no mundo, tanto quanto todas as frivolidades com que buscamos preencher a vida, de modo a esquecer que o tempo é implacável - e de nós é tomado. Como o correr dos ponteiros em um relógio onde não cabem as vinte e quatro horas.
--- O fel é a minha revolta - e ninguém pode me privar dela, a não ser eu mesma, quando decidir ter já cumprido o seu papel. E, enquanto isso, permaneço em consciência, cozinhando o amargo em fogo baixo, porque não acho saída plausível o apenas ignorá-lo. E, enquanto cozinho, manipulando em caldeirões suas propriedades elementais, vejo o que os noticiários ignoram, porque têm gula pelo caos: a síncope de corpos que sucumbem pelo tempo que igualmente lhes foi roubado.
--- Meu próprio corpo envelhece enquanto durmo no êxtase dos deveres.
--- Que mundo é esse que estamos criando para nós?