quinta-feira, 27 de março de 2008

Reflxões de um espírito não-limpo que espera.

---... Que espera! Triste definição. Mais triste ainda é não saber o que esperar de um espírito que espera. E este é ignorante também em sua paciência, pois não sabe por que esperar.
--- De fato - e sem mais delongas - é tudo uma grande tristeza do ponto de vista técnico. Muito mais, na verdade, do que do sentimental. E isto tudo é bem óbvio, se prestarmos suficiente atenção: Vivemos a vida num mundo cheio dessa podridão que é a tecnocracia. Sendo assim, a rotina, a técnica, e até mesmo as aparências são levadas muito mais em conta do que qualquer sentimento.
--- E se queres alguma coisa lamentável e digna de pranto, aí está o seu motivo. Não sentimos a falta das pessoas mais do que estas sentem a nossa falta. E quando estas se vão, não nos ocupamos em reconquistá-las ou, se assim for realmente melhor, esquecê-las. Ocupamo-nos, na verdade, em explicar a sua ida de forma técnica, fria, mecânica.
--- E por que é assim? Ora, com explicar tão etérea e sentimentalmente um fato concreto? Não goza o sentimento humano da mesma credibilidade que têm suas explicações, baseadas sabe-se lá no quê. E é isso.
--- Eu, por mim, já não concordo com nada disso. Acho o sentimento a mais certeira explicação para tudo. É ele que abrange das mazelas - tanto psicológicas como físicas - até a alegria de todo o ser. É ele a causa de tudo, como também o produto final. E isso nos leva - ou deveria levar - a uma profunda reflexão.
--- Mas as explicações se fazem tão necessárias... E ah! Como confortam quando têm base e fundamento...
--- Um espírito não-limpo que espera. Que seria isso? Mero reflexo distorcido de um indivíduo visto de dentro para fora, e que pobre indivíduo! Esperará indefinidamente até a obtenção de uma resposta que conforte sua tão enegrecida alma; esperará tão ardentemente quanto a chama do inferno imaginário que construiu para si próprio - e esperará sentado.
--- Há no mundo algo mais triste, resolver apegar-se à explicações para mover a direção do pensamento para um outro ponto, que não seja a dor? A dor pode doer de forma infinita, e o faz na maior parte das vezes. Mas se esquecemo-nos dela, ela dói baixinho...
--- Intrigante, no meio disso tudo, é o fato de as coisas não terem final - embora este esteja muito próximo. É assim com o mundo e sua constante ameaça de total destruição; é assim com a vida e seu contínuo convite à morte. Assim sempre será, como esse texto - que embora próximo ao seu fim, não consiga encontrá-lo -.
--- E o que seria isso? A confusão e só. Maldita essa necessidade de respostas! As coisas eram tão mais bonitas quando apenas sabia-se delas, não de seus porquês. Também a vida deve ser mais poética, quando não estamos embarcados nela... Mas isso foi somente um devaneio meu, que insisto em perder-me nessas perguntas imaginativas...
--- Somos livres sim. Tolo é aquele que não acredita, mais tolo do que aquele que não exerce sua liberdade. Afinal, exercê-la, ou não, é opcional. Acreditá-la, ou não, é simples questão de bom senso.
--- Tenho dito tudo isso. Sendo assim, sujo meu espírito, da mesma forma que mancho essa folha de papel, com a tinta da caneta. E faço isso constantemente, tenho tanto para dizer... Sujo o espírito com palavras e dúvidas que, talvez, nunca serão respondidas. Quem sabe? Por certo não eu. E também não você.
--- Venha. Sente-se ao meu lado e espere comigo. Aqui fica o convite.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Doce Ella.

---Ela não é um bom dia, ela nunca será um bom dia. Ao acordar, posso desejá-la ardentemente. Nada duraria, ou se faria importante, pois na hora de dormir, desejarei nunca tê-la conhecido.
---E ela não é um bom final. É a única que me corta a língua... Ela é... .
---Aquilo tudo foi um ato impensado. Esqueça. Não adianta viver do passado, o passado morreu. Foi por muito menos de cento e sessenta passos. Mais, muito mais, de setenta e dois - Se ando dormindo e perdendo a cabeça em lugares perigosos por demais, isso nada tem a ver com você -. Quem vive de passado é museu. E você deve tentar esquecê-la. Faça-o já, pois eu já o fiz. Ela não é um bom dia, nunca será.
---Nada mais vai importar. Foi assim o seu desejo. Ninguém mais a viu. Era uma altura tremenda, e ela sabia disso. Ela sabia disso tudo, havia calculado os mínimos detalhes. E dois copos de qualquer que seja a bebida não elevariam minha cabeça à altura em que ela estava. Foram menos de cento e sessenta passos. Mais, muito mais de setenta e dois.
---E ela caiu lá de cima. Tão devagar como cai uma pena. Foram incontáveis os segundos que levaram para ela bater no chão. Foram infinitos os momentos que seu cérebro recordava, a fim de dar a ela uma retrospectiva da vida que estava por terminar. Foram poucos os gritos, muitos os aniversários. Duas casas. Três irmãos. Um diário por terminar. Um cão gordo que ficaria para alimentar. Era muita coisa, mas já era tempo de dar um fim.
---Eu não sabia. Não sabia que ela estava infeliz. Que faria? Eu não sabia... Você estava longe, há muito tempo que estava. Para você ela não ligaria. Mas eu morava a dois quarteirões dali, e ela não me ligou. No celular dela, meu número para discagens rápidas era o 2. E ela não me ligou. Não...
---Três horas depois, irreconhecível numa mesa de necrotério, me avisaram do ocorrido. Ela havia acabado ali. O que sobrara, estava roxo. Seu rosto, roxo... E debilitei-me. A noite toda na eternidade. A noite toda não passou ainda... Não se incomode em oferecer-me seus entorpecentes terrenos. Acabarei por voltar mais tarde.
---E é por isso que você deve tentar esquecê-la. Faça-o, pois eu já o fiz. E nem três copos da bebida mais forte me elevariam a altura da qual ela caiu. Eram muito menos de cento e sessenta passos. Mais, muito mais, de setenta e dois.

domingo, 9 de março de 2008

A cor Dor.

---Eu queria mesmo era saber com o quê você se diverte lá embaixo, enquanto sou mantida presa. Na verdade, queria mesmo era saber o quão leve minha mão seria, não fosse esse maldito anel no dedo anelar. Você agora deve estar com os seus livros, tomando um chá tão frio quanto o seu coração. E sorrindo de lado, esse seu sorriso amarelado. Ao anoitecer, você subirá as escadas, devagar. Os degraus irão ranger conforme seus passos pesados e ébrios. Baterá em minha porta, mas eu não responderei. Você não ousa abri-la ainda, espera somente os meus desesperados gritos para dormir em paz. Não me escutará. Então uivará como uma cadela no cio, mas ainda assim, eu não vou te escutar. Essa noite não. Estarei entre a cama e o armário, com as mãos nos ouvidos, e prendendo a respiração para não fazer ruído algum. Meus ossos doem essa noite, mais do que em qualquer outra. A doença me mata.
---Você pouco se importa com meus ossos. Pouco se importa. Está longe, e voltou somente por que soube. Eu não lhe amo mais, nunca amei - sendo honesta. Não lhe tenho nenhum respeito, já não tenho nem mais medo. Só receio quebrar-me e morrer. Aliás, já não sei se receio mais. Ele voltou, e você sabe. Não me quer, mas tem medo de perder-me. Covarde... Não quer me ver feliz. Eu me sinto forte, quando está longe. Quero arrancar-lhe essa imunda face... Quero causar-lhe dor. Você não entenderia. Entre a cama e o armário, sou má e fria.
E se me escondo, é por que sinto. E se me escondo, é por que choro. Ah, e você não iria conter-me. Você e suas forças mundanas e vãs. Você não seguraria meus fracos e quebradiços pulsos. Você, só você, que nada é...
---Nada, nem ninguém iriam conter-me. Não. Por que sou mais forte. Quando deliro - e sinto aquele fogo trazido do inferno por dentro -, sou mais forte na ponta do giro. E se finjo, é somente por que sei que será mais fácil viver de forma alheia. E será menos ridículo fugir, passando-me por louca.
---Não. Que volte a cena! Daqui do meu quarto, você tem a chave. Pois muito bem. Prenda meu corpo nessa prisão mobiliada. E faça-me pensar estar atrás do morro, ou subindo os campos, sentando-me de quando em vez nas pedras (queridas pedras!). Prenda-me, se é mais fácil para você...
---Não! Que volte a cena! Se ao me direcionar para porta com a certeza de ser impedida, impelida pela vontade impossível de atravessá-la por um instante ou dois. Malditos ossos! Que fiz para merecê-los? E quantas vezes serão necessárias as lembranças dos últimos cinco minutos? Aqui. Encarando esse teto vazio, esse quarto tão moribundo, esse espelho tão distorcido. Não! Malditas paredes brancas! E essa porta que não quer abrir...
---Eu não vou gritar para você ouvir, não serão os meus ruídos os responsáveis por sua perda de sono esta noite. Esta noite, de nada poderá culpar-me. Nada farei, morrerei nesse colchão vermelho, com as bochechas mais púrpuras que o vestido que usava durante a tarde. E que tem você a ver com minha escolha? A cor púrpura sempre me caiu bem, sabe disso...! Não quero saber de você, nunca quis. Não peça explicações... Acho que explodirei aqui.
---E não me julgue você, que nada é! Vá viver onde esteve - não senti que se havia ido -. Vá preocupar-se com os que lhe são caros. Vá deixar-me. Vá. E depois, quando abrir essa maldita porta tua - com sua chave tão segura - verá só um cadáver nessa cama. Prenderei a respiração até de manhã. Quando ouvir o galo, já estarei azul, num azul sem fim. Longe daqui.
---Então que volte a cena, por que eu levantei-me do sofá, e a porta estava aberta. Não pedi para sair. Quem é você? Que queres de mim? Bastou um movimento para que suas garras imundas se atracassem em meus delicados pulsos. Imbecil! Estão quase pretos, por conta da sua rudeza! E nada fiz para justificá-lo, nem minha voz havia você escutado aquele dia. Uma ferinha tão sem escrúpulos, um grande admirador da dor física e psicológica, pois prenda-se a si mesmo em seu quarto! E reserve para as suas malditas células a sua loucura, que nada tenho a ver com seus problemas. Vá esquecer-me num copo qualquer de destilado!
---E se ele estivesse ali fora? Você não iria tentar impedi-lo. Sabe que é um pequeno inseto perto dele. Sabe que nada mais é do que um saco de ossos podres, que com um empurrão serão logo tirados de cena. Se ele estivesse lá fora... Do que estou falando? Ele estava lá fora, e você me impediu de ter com ele. Sou feliz lá. Aqui não. Ficou claro?
---Ai, como eu te odeio! Como meus pulsos doem! Como desejo ir embora! Ai como sinto saudades... Malucas saudades de pedras, de leite, de vida. Ai do que você me roubou! Ai de mim, do que me tornei nesse inferno!
---E esses cinco minutos... A porta me separava dos momentos do dia em que seu rosto não viria a minha mente. Em que, por um momento, o enojo constante que me persegue deixaria de existir. Em que EU deixaria de existir para viver dentro do coração dele. Não quero esse quarto. Deixa-me sair. Deixa-me sair. Deixa-me sair...
---Era uma porta, um encontro. Eram cinco minutos - E que quarto quente! -. Eram cinco minutos que me levariam ao azul. Naquele púrpura sem tamanho, mudaria os meus negros pulsos, meus joelhos, meus cotovelos... Você não mais me veria. Eu seria uma de minhas pedras. E eu não te veria, viveria atrás do morro... E seria doce, na ponta da língua. O amargo eu não teria. Era verde, sua fera descontrolada! Minhas bochechas estão púrpuras! Acho que estou ficando azul...