domingo, 9 de março de 2008

A cor Dor.

---Eu queria mesmo era saber com o quê você se diverte lá embaixo, enquanto sou mantida presa. Na verdade, queria mesmo era saber o quão leve minha mão seria, não fosse esse maldito anel no dedo anelar. Você agora deve estar com os seus livros, tomando um chá tão frio quanto o seu coração. E sorrindo de lado, esse seu sorriso amarelado. Ao anoitecer, você subirá as escadas, devagar. Os degraus irão ranger conforme seus passos pesados e ébrios. Baterá em minha porta, mas eu não responderei. Você não ousa abri-la ainda, espera somente os meus desesperados gritos para dormir em paz. Não me escutará. Então uivará como uma cadela no cio, mas ainda assim, eu não vou te escutar. Essa noite não. Estarei entre a cama e o armário, com as mãos nos ouvidos, e prendendo a respiração para não fazer ruído algum. Meus ossos doem essa noite, mais do que em qualquer outra. A doença me mata.
---Você pouco se importa com meus ossos. Pouco se importa. Está longe, e voltou somente por que soube. Eu não lhe amo mais, nunca amei - sendo honesta. Não lhe tenho nenhum respeito, já não tenho nem mais medo. Só receio quebrar-me e morrer. Aliás, já não sei se receio mais. Ele voltou, e você sabe. Não me quer, mas tem medo de perder-me. Covarde... Não quer me ver feliz. Eu me sinto forte, quando está longe. Quero arrancar-lhe essa imunda face... Quero causar-lhe dor. Você não entenderia. Entre a cama e o armário, sou má e fria.
E se me escondo, é por que sinto. E se me escondo, é por que choro. Ah, e você não iria conter-me. Você e suas forças mundanas e vãs. Você não seguraria meus fracos e quebradiços pulsos. Você, só você, que nada é...
---Nada, nem ninguém iriam conter-me. Não. Por que sou mais forte. Quando deliro - e sinto aquele fogo trazido do inferno por dentro -, sou mais forte na ponta do giro. E se finjo, é somente por que sei que será mais fácil viver de forma alheia. E será menos ridículo fugir, passando-me por louca.
---Não. Que volte a cena! Daqui do meu quarto, você tem a chave. Pois muito bem. Prenda meu corpo nessa prisão mobiliada. E faça-me pensar estar atrás do morro, ou subindo os campos, sentando-me de quando em vez nas pedras (queridas pedras!). Prenda-me, se é mais fácil para você...
---Não! Que volte a cena! Se ao me direcionar para porta com a certeza de ser impedida, impelida pela vontade impossível de atravessá-la por um instante ou dois. Malditos ossos! Que fiz para merecê-los? E quantas vezes serão necessárias as lembranças dos últimos cinco minutos? Aqui. Encarando esse teto vazio, esse quarto tão moribundo, esse espelho tão distorcido. Não! Malditas paredes brancas! E essa porta que não quer abrir...
---Eu não vou gritar para você ouvir, não serão os meus ruídos os responsáveis por sua perda de sono esta noite. Esta noite, de nada poderá culpar-me. Nada farei, morrerei nesse colchão vermelho, com as bochechas mais púrpuras que o vestido que usava durante a tarde. E que tem você a ver com minha escolha? A cor púrpura sempre me caiu bem, sabe disso...! Não quero saber de você, nunca quis. Não peça explicações... Acho que explodirei aqui.
---E não me julgue você, que nada é! Vá viver onde esteve - não senti que se havia ido -. Vá preocupar-se com os que lhe são caros. Vá deixar-me. Vá. E depois, quando abrir essa maldita porta tua - com sua chave tão segura - verá só um cadáver nessa cama. Prenderei a respiração até de manhã. Quando ouvir o galo, já estarei azul, num azul sem fim. Longe daqui.
---Então que volte a cena, por que eu levantei-me do sofá, e a porta estava aberta. Não pedi para sair. Quem é você? Que queres de mim? Bastou um movimento para que suas garras imundas se atracassem em meus delicados pulsos. Imbecil! Estão quase pretos, por conta da sua rudeza! E nada fiz para justificá-lo, nem minha voz havia você escutado aquele dia. Uma ferinha tão sem escrúpulos, um grande admirador da dor física e psicológica, pois prenda-se a si mesmo em seu quarto! E reserve para as suas malditas células a sua loucura, que nada tenho a ver com seus problemas. Vá esquecer-me num copo qualquer de destilado!
---E se ele estivesse ali fora? Você não iria tentar impedi-lo. Sabe que é um pequeno inseto perto dele. Sabe que nada mais é do que um saco de ossos podres, que com um empurrão serão logo tirados de cena. Se ele estivesse lá fora... Do que estou falando? Ele estava lá fora, e você me impediu de ter com ele. Sou feliz lá. Aqui não. Ficou claro?
---Ai, como eu te odeio! Como meus pulsos doem! Como desejo ir embora! Ai como sinto saudades... Malucas saudades de pedras, de leite, de vida. Ai do que você me roubou! Ai de mim, do que me tornei nesse inferno!
---E esses cinco minutos... A porta me separava dos momentos do dia em que seu rosto não viria a minha mente. Em que, por um momento, o enojo constante que me persegue deixaria de existir. Em que EU deixaria de existir para viver dentro do coração dele. Não quero esse quarto. Deixa-me sair. Deixa-me sair. Deixa-me sair...
---Era uma porta, um encontro. Eram cinco minutos - E que quarto quente! -. Eram cinco minutos que me levariam ao azul. Naquele púrpura sem tamanho, mudaria os meus negros pulsos, meus joelhos, meus cotovelos... Você não mais me veria. Eu seria uma de minhas pedras. E eu não te veria, viveria atrás do morro... E seria doce, na ponta da língua. O amargo eu não teria. Era verde, sua fera descontrolada! Minhas bochechas estão púrpuras! Acho que estou ficando azul...

5 comentários:

André Soares disse...

Bom, pelo que pude perceber coexistem o ódio e a vingança.
Achei brilhante como descreves a palavra "púrpura", como um símbolo de dor.
Você escreve com uma maestria digna de Sófocles.
MUITO BOM, MESMO!

Nadine Bagshot disse...

quando eu pensava que isso era uma segunda personalidade que tomou forma, eu chego a não acreditar em mim mesma!
belíssimo texto, irmã.

Acadius Piscius disse...

Sófocles?! oO
Guijinha, mais um passãozão quanto ao que eu tinha dito antes... você é a boazona! quase chorei sem nem saber o contexto... hehe
te amo!

André Soares disse...

sim, Sófocles.
um dos maiores dramaturgos da grécia antiga, cujas tragédias se definem pelo amor exagerado, que resulta no ódio vingativo.

silencio disse...

Achei o texto sufocante, toda a aura e essa coisa de estar presa num quarto... talvez, por eu não ter uma relação mt boa com o ambiente do meu tb, foi meio para o lado pessoal, haha.. mas existe toda uma angústia difundida nessa aura sufocante, que você soube trabalhar de forma legal. Um exemplo é essa coisa de remoer, remoer, voltar a cena, voltar os minutos, relembrar, relembrar... paranóias que a clausura traz à tona!
Por isso mesmo que, dentre as duas relações que percebi (1 - "a princesa e o seu dragão", se é que vc me entende ;] e 2 - ela com esse ambiente reduzido/sufocante) a primeira me soou menos enlouquecedora que a segunda, por mais estranho que pareça. Talvez por eu já ter passado por esses momentos de encarar o teto vazio e ficar angustiado em meio às "malditas paredes brancas" (branco é uma cor que me irrita, confesso), acho que sei bem como isso torna tudo muito maior (num sentido paranóico mesmo) do que as coisas realmente são.
Enfim, mt mt bom o texto, vc sabe!! Escreva sempre, é um prazer vir aqui ******: