sábado, 23 de fevereiro de 2008

A intervenção divina em um destino guiado à parafina.

Pequeno parêntese inicial: (Quero, antes de tudo, esclarecer o fato de que esse não é o texto original referente ao título acima. O texto me deixou durante a noite, enquanto estava adormecida, e nada pude fazer para contê-lo. Comecemos, portanto).

Eu perdi o meu texto. Ah, eu perdi o meu texto... Deveria tê-lo escrito ontem, mas achei que se guardado por um dia, viria mais forte. Hoje já não vale nada, feito Cruzeiro em Plano Real.
Ontem o que foi, foi divino - por Deus que foi divino! - tanto como inexplicável para os espíritos vazios e ateus. Ontem foi por pouco que tudo não explodiu. Deveria ter tudo virado cogumelo - mas não. Por palavras friamente calculadas - como explicar tal fato? Que agonia...! - as coisas se acalmaram “à la” Guerra Fria. Na verdade, nada passou de guerra silenciosa e por demais pomposa, mas guerra ainda assim.

(Hoje estou meio “anos 50”, isso deveria virar expressão... Mas não é assunto importante. Deveríamos voltar ao meu texto).


Pois muito bem. Hoje acordei meio “ontem” e abri a geladeira. De fato, não sei por que o fiz. Afinal, não tenho fome pela manhã. Porém desde esse momento, até bem de tardinha, nem sequer pensei no texto dormido. Lá pelas cinco horas, tive necessidade dele.
A gente tem necessidade de texto que nem tem de ver avião no céu, e apontar, e dizer “Olha lá um avião...”. É bom precisar disso, muito bom. Mas quem vê avião no céu todo dia, não acha grande coisa, embora seja. É bonito ter necessidade disso. Assim como é bonito ter necessidade de texto. Eu tenho, e gosto muito.
Sendo assim, quando a gente o tem na mão - e sem aviso ele vai embora - é triste. E é esse o meu texto de hoje - mero lamento pelo de ontem, que nada foi.
É triste, triste.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Então, por fim.

Eu me dou ao luxo de dispensar o seu comentário. Dispenso-o ardentemente. Digo que me dou ao luxo, pois prefiro pensar que sou eu quem não quer ouvi-lo, e não você quem não quer dizê-lo...
Dou-me também o luxo de dispensar a sua voz, o seu sorriso, os seus conselhos - tantas vezes furados e inúteis (levando em consideração as suas crenças), tantas vezes únicos e dotados de exclusiva atenção -. Pois muito bem, dispenso-lhe por inteiro. Agora vá, suma. Você tem tantos outros para comentar as suas frivolidades... Tantos outros tais quais você. Assim sendo, por que sentir falta de um velho tão inútil e por demais ajuizado, que se limitaria a dar tapas em sua cabeça, conforme o decorrer de suas histórias absurdas?
Vá. Leve o cheiro dos seus cabelos, a erva doce, a cor verde... Leve tudo, tudo que deveria estar guardado nalgum lugar da memória. Suma e seja, enfim, aquilo que sempre desejou, sem se importar com o que fica. Não preocupe-se por demais. Permita-me, porém o luxo de, assim como você o faz, não mais lembrar-me, não mais desejar...
Quero somente matar de maneira rápida e definitiva a necessidade de sua lembrança para seguir. Então, vá. Suma e leve tudo com você.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Mama **

Oito horas da noite. Sentada no sofá desbotado, já manchado dos mais diversos tipos de molho, ela assistia a televisão. O assunto do momento não desaparecia e, não importando o canal, a guerra estava lá. O repórter arriscava sua vida mostrando o cotidiano do campo de batalha. O horror crescia aos poucos no coração dela. A agonia fazia com que ela se sentisse sufocada.

“Embopty, 9 de dezembro de 1993.
Mãe,
Eu já não consigo mais escrever, por que se eu contar as coisas que vejo aqui vou ficar louco! Mas, às vezes, preciso contar tudo isso para algúem. Se eu guardar tudo dentro de mim, sinto que vou perder minha sanidade.”.

O rosto de seu filho só ficava cada vez mais nitido em sua mente, e o esforço ao qual ela se submetia para tentar não pensar em sua morte era contínuo, cansativo.
“Todos nós morreremos no fim...”,diziam as linhas da última carta recebida por ela com algumas notícias. Mas que fim era esse do qual tanto se ouvia falar?

“ Eu espero que a senhora esteja bem. E espero que não se prenda a minha estadia por aqui. Estou bem, na medida do possível. Hoje o capitão do nosso batalhão morreu no tiroteio das nove da manhã. Ainda não sabemos quem vai assumir o seu posto. Espero muito que não seja eu...”.

Meses sem resposta. Sua fonte de informação agora era a televisão. Confiaria somente nela. Os armários de sua cozinha estavam vazios, assim como a geladeira. Havia uma grande pilha de louças sujas jazendo por dias dentro da pia, mas nada disso importava. Prestaria atenção somente a televisão, e a ela seria fiel. Precisava de informações. As releituras das mesmas cartas mandadas já não eram mais suficientes, uma vez que as palavras já estavam decoradas em sua cabeça.

“Aquele meu ferimento no braço não melhorou ainda, e talvez não melhore também. Não se assuste com isso, mas sinto que devo contar a verdade. A senhora recebeu a minha última carta? Se não, não deve saber do ferimento. Bem, é grave e fundo. Fui atingido por uma bala de fuzil bem na articulação do cotovelo e, se a infecção não melhorar, o melhor remédio será amputar.”

De um todo, as imagens não ajudavam muito, ou quase nada. A fumaça contínua não deixava muita coisa clara. Correria e gritos. Sangue e Dor. Já não lembrava nem ao menos o motivo de começo. Já esquecia, na verdade, quando começara a ouvir falar de um final. Aliás, suas esperanças de que a guerra acabasse um dia já haviam se extinguido. Precisaria apenas garantir a sobrevivência de seu menino por lá. Mesmo que ela nunca mais voltasse a vê-lo, seria bom saber que ele está vivo.

“eu não sei muito do que está acontecendo, pois tenho sido mantido na enfermaria. Mas acho que estamos perdendo muitos homens e, talvez, não será tão cedo quanto esperávamos o fim disso tudo. E eu sei que já durou bastante tempo. Acredite mãe. Assim como todos por aqui, eu sei.”.

E ele escrevera cartas, certo? Tantas delas provavelmente extraviadas... As duas últimas eram tão absurdamente melancólicas e sem sentido algum, que o corção doía de saber que tudo o que acontecia por lá era verdade. Pessoas morriam todo dia num espaço que não era fictício. E o seu menino, - ao qual ela amara e cuidara por tanto tempo - estava arriscando sua vida por uma causa perdida há muito.... Quantas palavras e notícias ela nunca saberia por ninguém? Talvez as coisas ditas fizessem mais sentido se ela tivesse toda a sequência de cartas... Haveria ele recebido as SUAS cartas? Será que ele obtivera alguma resposta, ou já se dava por completo esquecido entre os queridos, e já nem se importava mais em escrever? Bom, isso explicaria a tão demasiada ausência de notícias.

“Eu não poderei mais mandar cartas longas, mãe. Por conta do ferimento no braço, quem escreve por mim é a enfermeira. E ela tem muitas cartas para escrever... Posso pedir-lhe um favor? Manda-me alguma coisa assim que puder. Sinto falta do cheiro de casa. “

No fim das contas, ela já não vestia mais somente o pijama. Em frente a televisão, toda a cama se fazia vestimenta. Inúmeros cobertores não podiam conter o imenso frio que sentia. E inúmeros canais e telenoticários não saciavam sua sede de informações. Perdeu o controle dos dias, das horas e já não sentia fome. As perguntas brotavam, umas seguidas das outras em sua cabeça. Muitas delas talvez tão repetidas que traziam com elas uma linha de raciocínio já pronta, a qual ela não se permitia esquecer.
- Assim que ele for - repetia ela - será o único culpado de seu destino. As coisas seriam tão melhores se ele permanecesse por aqui...
E o sono também já tinha saído de controle, pois já não fazia idéia se dormia, ou quando dormia. E ela já não mudava a posição também.
-E se ele morrer, será somente por que foi o seu destino.
Mas no fim das contas, só pensava no rosto do menino tanto esfolado, como sangrento. E agonizante na hora da morte. Gritando pela mãe, pedindo ajuda para parar a dor. Era demais pra um único coração. Nessas horas o frio aumentava, a fome diminuia ainda mais.

“ Ah, e quantas mentiras a gente escuta por aqui, mãe. Quantas coisas impossíveis de se acreditar... Ontem mesmo, ouvimos que o governo mandou entregar quinhentos e trinta e seis caixões. E que pagará pelas despesas dos corpos.
É um modo muito sinistro de diversão, eu sei. Mas ela é tão rara por aqui que qualquer coisa serve no fim. Boa risadas são arrancadas quando o tiro pega a sua perna, e não no seu peito, ou na cabeça.
Oh mãe, o que a guerra fez com as minhas pernas! Você deveria ter tido mesmo era uma garota, e me esquecido em algum lugar. Eu poderia ter sido um filho melhor, sim.. Mas se cortar a infecção, talvez eles amputem de uma vez... Você deveria ter tido uma garota, mãe. E eu poderia ser um filho melhor.”

E por fim, as palavras se embaralhavam de tal forma na cabeça dela, que o conjunto formava um grito contínuo e agudo. Este era o único som que ela conseguia escutar. E nesse grito, o filho pedia por ajuda. E chorava. E corria ao seu encontro para deitar em seu colo. Ela prometia cantar pra ele uma canção, se ele se comportasse bem. E num instante ele voltava a ser menino. Mas antes que a magia continuasse, todos os rostos mortos de seu filho passavam como um clarão em sua mente -quantos ele já não havia matado?-. E ele se recolhia num canto e se distanciava.

“Mãe, vamos todos para o inferno quando isso acabar. Mas não me culpe por isso. E não deixe seu amor por mim de lado. Os túmulos são feitos sob medida, sabia? E quando acabar, serão eles nosso portais gratuítos para o fogo eterno. Algum calor seria bem vindo, na verdade. Não me espere de volta. Todos nós morreremos no fim”.

E em algum lugar, num sofá manchado, ela soluçava o que já por certeza havia perdido. E seus soluços serviram como marcação para música que tocava na esquina logo abaixo. Na TV, o reporter ainda mostrava as balas por todos os lados. Os corpos sem nome jaziam no chão.
Seus fracos dedos buscaram o controle remoto pelas dobras do sofá. Não mudou sua posição, mas desligou a TV. Estava tudo acabado e ela soluçava. Ela não o culpava mais, pois ele deixou o fogo guiar seu destino. E este destino se incendiou no fim, no meio dos soluços dela.

** Inspirado.