sábado, 25 de outubro de 2008

Galo de vento: Norte.

---- O galo de vento apontava para o norte, e a voz em meu ouvido soava metálica como o violão ao fundo. As noites eram todas frescas e úmidas, e o céu, às cinco e meia, era tão lindo que impressionava às lágrimas. Tudo era muito perfeito e bom, entenda. Épocas são épocas, e tudo, de fato, muda. Hoje, por exemplo, não sei se apreciaria tudo com a mesma intensidade. Hoje, nada. Mas sei que tudo que era meu, era verdadeiro e bom e sem julgamento algum. Era somente. E eu tinha uma liberdade tão profunda que o galo era meu quando virava com o vento, e também o céu, e também a Lua, os grilos, ou as constelações.
---- Quando eu voltava, existiam pessoas. E elas tinham histórias, e também eu as tinha. E também as pessoas. Hoje, nada. E, surpreendentemente, não é algo de fato importante. Falta tato e sentimento. Falta, sabe? As quatro paredes são tão apertadas que, às vezes, me sinto sufocar. Mas passa. E aí eu penso: o que não passa, não é mesmo? Tudo nessa vida ainda há de passar. Muita coisa ainda há de nascer, e muitas ainda hão de morrer, por que não? O fato é que não doer, dói também. Por que ter e perder machuca, mas passa. E ter e perder e entender e suportar e quase morrer também passa. Mas, de alguma forma, fica. Acho que são as lições. E aí o que resta é isso. Quando eu passar também, quando chegar a minha hora, vão sobrar lições, vai sobrar vida. Engraçado, mas bonito.
---- Assim que eu morrer, tudo que é meu transbordará ainda mais vida. Por que o que eu fui estará em tudo que passei, ou senti. E será ainda mais valioso. É como se eu tivesse capturado pequenos momentos de existência e guardado em coisas. E elas vivem por mim. Acredite, eu não morrerei nunca. Você que agora lê bem sabe.
---- E quando nada mais restar, restará ainda o que eu fui. Ainda que ninguém se lembre, o mundo sabe de mim, eu sei da terra, e ela passará adiante essa minha vida tão... Tão minha. Tão unicamente minha. Não compartilhada e guardada para um momento oportuno que pode nunca chegar. Sim, mas ela estará lá e eu sorrirei todas as vezes que presenciar o nascer do Sol, todas as vezes que sentir o frio das madrugadas, todas as vezes que chover em minha cabeça. Todas as vezes, todas. A essência toda estará guardada nalgum lugar e eu poderei lembrar-me de mim. É tão absurdamente esquisito falar de algo assim... Mas é um fato, oras. Dá para não se lembrar de fatos tão concretos?
---- Hoje eu já não acredito que as coisas são únicas. Acredito na multiplicidade de situações, em ordem de fazer com que cresçamos todos. E veja, ainda há menos de dois anos atrás eu acreditava na unidade. Ainda a menos de dois anos eu achava que situações eram imutáveis, que algumas nobrezas eram inegáveis, que éramos todos iguais. Eu era muito linda nessa época. Muito linda por dentro, mas muito tola. E tolice é algo muito bom de sentir. Se pudesse, no entanto, não sei se trocaria meu estado atual por aquele anterior. Ah, isso é um perigo...
---- Agora eu me apego a algumas lembranças, e penso: será que as outras pessoas também são assim? Isto é para mim uma curiosidade constante! Será...? O que as leva a esconder, a comer demais, a chorar... O mesmo que me leva a fazer tudo isso, será?
---- Minhas células mudaram e hoje eu vivo um todo oposto. Os sons metálicos formam postos pra escanteio, momentaneamente. Mas ainda recorro a eles, quando preciso. Minhas palavras aparecem às vezes, somente. Ah, minhas pobres palavras esquecidas!
---- Mas creia que eu mudei e fiquei ao mesmo tempo. A amplitude é algo constante agora para mim, e eu gosto de amplitude. Não sinto falta da minha restrição. Sinto falta das minhas multiplicidades que nunca mais se repetirão, nunca! Por que se nem mais eu sou múltipla... Hoje eu sou ótima com pessoas. Sei rir nas horas certas, sei quando mostrar desaprovação, sei fazer-me entender. Mas sinto pelo tempo ido em que eu não precisava demonstrar nada disso, pois acreditava serem elas subentendidas. Muita gente tomou partidos errados, é verdade. Mas isso pouco me afetou naquela época. Eu fazia transparecer somente as coisas que eu escolhia a dedo, era delicioso! Eu era somente o que queria ser, e não o que deveria pela falta de compreenção de outras pessoas. Eu me escolhia e selecionava a mim, mas não aos outros. Isto sim foi um erro, às vezes. Mas é que gastava tempo em outras seleções que não a das pessoas. Eu tinha o dom de aceitar. Era aceitada também? Não sei... Na maioria das vezes, acho que era. Mas o fato é que fazia por onde. Tinha tanto de mim por dentro, que por fora eu não fazia questão de me impor. Então eu era muito neutra. Costumava agradar as pessoas, pois elas transferiam para mim as particularidades delas. Aí é fácil, muito mesmo.
--- Acho que sou mais sincera agora, até tenho maior adimiração pelo estágio de tudo neste momento. Sim, sou mais reservada. Não, não sei mais reservar-me para mim. Acho que é isso. Sinto falta de mim mesma. Mas é uma falta boa. Sim, pois sei que, eventualmente, vou voltar. E de tempos em tempos ainda sentirei frio em madrugadas. E verei o Sol nascer quente. Não ao lado de pessoas, mas ao meu lado, embora, às vezes, as pessoas são o meu outro lado. É que ainda não me encontrei de novo, vivo a perder-me. As partes que depositei em outras gentes não voltam e perco partezinhas de alma bem facilmente. Quer dizer, perdia. Estou melhor agora dessa minha mania de esquecer e quando dar por mim já ter feito a transferência. Mas eu não demoro muito mais, creio. Eu volto em tempo. Ainda há tempo. Ainda... Eu sei.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Epifania.

--- Ela me disse “adeus” e foi. E o que eu sabia dela não voltou jamais, nem mesmo durante as poucas palavras posteriores, nem mesmo nos frios desejos de felicidade. E agora eu temo. Pois algumas de minhas despedidas voltaram atrás, mas não sei quantas mais eu poderei conter. E logo eu serei toda despedidas. Eu sei que serei toda resumida num eterno gesto de adeus, num abanar de lenços brancos, num litro d’água que escorre de olhos tão sinceramente comovidos. Mas até quando? Nunca antes tudo me pareceu assim tão claro. A certeza me abala, mas não me impede. E certeza é algo que, de fato, é inegável.
--- Em toda a minha vida, foram poucas as vezes que a certeza me visitou com suas confianças e, nestas tais vezes, não errou em nada que previu. E por isso eu temo. Pois eu estou certa que o “adeus” se aproxima, seja de um lado, seja de outro, ele vem. Silencioso com sua negra capa a farfalhar sinalizando sua chegada. O vento sussurra que eu devo estar alerta mas, vento, digo à ele, que eu posso fazer? E ele sabe que nada, mas se cala. O vento, também ele, teme por mim... Deus! O que será que me aguarda tão maleficamente escondido por dentre as paredes desse tempo que não passa, que congelou, que se arrasta... Até o tempo! E isso me surpreende... Até o tempo sucumbiu. E que sou eu diante dele? Nada. E que sou eu diante do que me aguarda? Presa. Deus! Ajuda-me, se puderes, mas não podes e eu bem sei.
--- Fui tola, fui ingênua, fui sonhadora e caí. Eu caí, como um pássaro que subitamente perdeu as penas, como um nada que não merece voar. Como alguém que cai subjetivamente em esquecimento. Em esquecimento, esqueceram-me.