sábado, 8 de outubro de 2011

Onirogênese

-- De repente o mundo pareceu desaparecer, como se caísse em um buraco no infinito e em espiral. Na falta de sentido, tudo pareceu preenchido da mais perfeita lógica, ainda que na ausência da mesma. E, do absoluto vazio, um caminho desenrolou-se aos seus pés, feito um tapete cilíndrico e roxo. E esse caminho o sustentava no vácuo em que estava.

--- O caminho lhe mostrou muitas coisas curiosas, pedindo em troca somente o seguro perambular de seus pés por sua mágica fibra flutuante. Parecia um bom negócio. Seguiu-o e não se arrependeu. Lá longe havia um conjunto de montanhas alaranjadas que pareciam dançar gelatinosamente (talvez por causa do calor) e ele seguia o caminho, decidido, sem temer a falta de espaço, ou de tempo, ou mesmo o desaparecimento do mundo que -há pouco- era o único que conhecia.

--- E pelo caminho viu pássaros arco-irizados voando em bandos e pintando o céu até então negro. As tintas eram tão vivas, que sequer tinham ar de realidade - pareciam algo além disso. E os pássaros usavam seus pequeninos corpos como pincéis, dando cor ao espaço escuro e delimitando limites entre a ordem do terrestre, onde estava o caminho, e a ordem do celeste, onde as cores mesclavam-se criando ainda novas cores, inomináveis, e fazendo daquele céu algo difícil de explicar.

--- À sua frente ainda desenrolava-se o caminho, sem nunca duvidar de seu percurso- e ele seguindo-o, ao que parecia, em direção às montanhas gelatinosas. Logo à frente viu flores e, ao passar por elas, percebeu que todas deram por segui-lo em sua recém-iniciada jornada. Eram, então ele e as centenas de flores, marchando com seus delicados pézinhos amarronzados, perambulando pelo caminho arroxeado, em direção às montanhas laranjas de gelatina.

--- E logo ali à frente havia uma árvore de maçãs. Nela havia as maiores e mais suculentas maçãs existentes! A árvore lamentou-se não poder segui-lo (as coisas são como são), mas mandou suas filhas em seu lugar e deu por chover maçãs que caiam até um certo ponto e depois flutuavam como se estivessem seguradas por um invisível varal comprido. Uma após a outra as maçãs se ordenaram em fila indiana e seguiram a procissão às gelatinas das montanhas, enquanto a árvore chorosa lhes acenava adeus e recomendava bons modos.

--- E assim foi por algum tempo, até que um casal de raposas adentrou o caminho cor de ameixa. Eram raposas de amor e tudo nelas refletia a junção de seus corpos que logo aconteceria, resultando em uma só raposa, que seguiu também a procissão. Logo eram duas raposas de novo, brincando e correndo à frente das flores. Depois fundiam-se e, novamente, uma enorme raposa amorosa mostrava-se em toda a sua magnitude, pouco antes de separar-se ainda outra vez em dois corpos distintos que tocavam-se esperando a hora da fusão breve. E assim foi, todos em marcha às laranjas gelatinosas.

--- E logo o caminho foi invadido por filhotes de nuvens, desesperadamente perdidos de suas mães, e que somente viam alternativa em seguir o grupo até o ponto mais alto para poderem reencontrar o algodão materno. E lá foram também as nuvens nenês aos dançantes alaranjados. E foi também todo o resto, resoluto, tão certeiro da jornada como o próprio caminho cor-de-vinho-vertente que se desenrolava por sob seus pés.

--- Andaram por longo período, que as montanhas estavam distantes (e de alguma forma pareciam afastar-se). Não pronunciavam palavra, mas seus corações cantavam uma canção de tambores místicos que os embalava. As flores dançavam, às vezes. As maçãs seguiam comportadas, as raposas rolavam em fusão e desfusão de amor e as nuvens já aquietavam o desespero, tranquilizadas pelo semblante bondoso e tranquilo de todos os integrantes da jornada do caminho. E à frente ia ele, com seu chapéu feito um grande copo de leite morno pendendo da cabeça, saltitando em seus pijamas, descalço e contente, em busca dos montes cor de abóbora.

--- E o que era aquilo logo à frente? Voltavam os pássaros-pincéis. E voando em graça e eloquência, pintavam a terra ao redor do caminho, que continuava a desenrolar-se em busca de seu destino já certo. Pintaram a terra em cores, como fizeram com o céu. Seus corpinhos delicados pincelavam inspirados e o vácuo foi aos poucos preenchido, de modo que figuravam nesse universo as cores celestes, as cores terrestres (que são essencialmente diversas entre si), o caminho-ameixeado e as dançantes-colinas-cítricas.

---Continuavam todos (saltitando, como ele que ia à frente). Até as maçãs arriscavam pulos fora de seu varal invisível. Logo à frente erguiam-se as montanhas, que estavam tão próximas agora! E o coração dos caminhantes foi ainda mais aliviado pela mais plena alegria. Deram-se as mãos e a junção de suas figuras era tão longa em extensão que deram a volta nas montanhas, como se coletivamente as abraçassem. Ao conjunto, juntaram-se os pássaros e todos foram muito cuidadosos ao pegarem em suas penas artísticas, para que também eles pudessem fazer parte da roda.

--- E dançaram, quase flutuando ao lado das montanhas de gelatina. Também as montanhas dançavam, ao som dos tambores inaudíveis, interiores de cada ser ali presente e seguidores da mesma partitura maravilhosa. Eram eles, as flores de pés finos, as maçãs bem-educadas, as raposas de paixão, as jovens nuvens acalmadas, os pássaros-pincéis e ele. Ele que tudo sentia tão profunda e prazerosamente.

--- Veio, então, a noite - que escureceu as cores do céu com tons de inverno. Todos sentaram-se ao redor das montanhas que deram por contar contos de tempos muito idos e desaparecidos da memória do tempo. Desaparecidos também eram os vestígios por eles deixados no espaço do mundo. E todos já haviam se esquecido deles há muito. Todos, menos as montanhas da dança-tangerina. Os caminhantes ouviram até seus cílios pesarem. E, deitando-se uns sobre os outros, deixaram o sono vencê-los após aquela longa jornada. Sonharam que caminhavam ainda mais longamente, preenchidos de alegria e leveza. E a manhã veio antes que pudessem se defender dela.

--- As grandes nuvens-matronas virem buscar seus fofos-bebês-alvos. As raposas rolaram para longe fundindo-se e desmanchando-se em um e dois corpos, indefinidamente. As flores fincaram seus pézinhos marrons aos pés das montanhas-bailarinas, as maçãs puxaram o novelo de seu varal e voltaram à sua árvore-mãe, ansiosas por contar de sua jornada. E ele, ele notou que tinha seis dedos na mão. Era o fim.

--- Despediu-se do querido caminho arroxeado e das montanhas-recheadas-de-movimento e fechou os olhos para acordar em seu quarto, detentor de contornos físicos, cores compreensíveis, convenções inteligíveis e voltou à sua vida longe da lógica colorida.

--- Acatou a distância e não desejou voltar. Os tambores ainda batiam nele.