domingo, 22 de junho de 2008

Anis.

---Era duro aquele banco de madeira. Duro e desconfortável. Pendularmente, seus pés balançavam para frente e para trás, mas ela já nem lembrava que fazia isso. Do céu, gotas pesadas caiam segurando um pouquinho de água, até se espatifarem no chão. É que chovia na estação de trem, chovia forte. Aquele dia estava friento, mas não era o tempo, era o ar que estava seco e gélido. O ar ou vento, que teimava em cortar os poros com suas navalhas afiadas.
---Era por volta de umas seis da tarde e ela não tinha fome alguma. Não sabia descrever-se como ansiosa, temerosa, ou simplesmente fatigada (era fato que sentia uma fatiga imensa desde as quatro horas, quando o mordomo a deixara no ponto). A estação era um lugar fatigante, enfadonho. As pessoas que trabalhavam ali eram enxutas por demais, com suas expressões imutáveis. Na verdade, tudo ao redor contribuía para dar àquela tarde um ar de cinza. E era realmente tudo muito cinzento: o céu, o bancos, os ladrilhos do chão da estação... Tudo muito, muito cinzento.
--- E então já se passavam duas horas. Duas longas e monótonas horas Nada de trem, nada de ninguém. Ao menos ninguém que ela julgava importante, ou digno de nota. Todos da estação iam-se apressados para algum lugar. Ninguém reparou nela, e ela também pouco se importou com as outras pessoas. Tempestade interna, acho que era isso. Pensava alucinadamente em bilhões de coisas distintas.
---Sim, estava muito fatigada. Resolveu deitar-se um pouquinho naquele banco tão duro da madeira mais forte. Tirou seu chapéu de cetim, e deitou a cabeça por sobre a mala de viagem. A mala estava cheia, estava entupida com todos os vestidos que tinha. Não só vestidos, mas também sapatos e meias de renda. Todas as roupas, tudo.
---Iria somente escutar o barulho dos passos das pessoas, e tentar destingi-los de olhos fechados. Sim, fecharia os olhos para repousar. Descansaria a vista enquanto não chegava o trem. E de mais a mais, o apito seria sonoro e a iria acordar se, ao acaso, adormecesse.


---Não havia nem mais sombra de cinza. Ali era tudo muito etéreo e calmo. Os campos eram azuis e ela os amava muito. O vento batia de leve nas folhas de anis. Batia de leve em seus pontinhos brancos e parecia que eles todos iam levantar vôo para qualquer lugar divino. E as folhas farfalhavam, era como se contassem qualquer conto, ou cantassem. Como se as folhas cantassem.
---E esse mesmo vento arrancou seu chapéu de cetim branco da cabeça e o foi levando naquele campo verde-vivo sem estrada certa, sem marcação alguma, todo ele livre de caminhos de passagem. Todo ele envolto naquele cheiro delicado de flor de anis.
---Ela seguia o chapéu, mas ele estava agora muito alto, e era até difícil vê-lo, na confusão que sua cor fazia com a cor do céu. Pois era tarde (aquele momento em que já é noite, mas nada é escuro ainda) e o tempo era bom, o ar fresco, o vento morno... Nenhum sinal de vida por quilômetros a fio. Ali, ela era única.
---E então já não se via mais o chapéu, qualquer sinal dele desaparecera. Ela o havia perdido para o vento que batia sem cessar naquele campo. Era indescritível. E ela amou ainda mais tudo aquilo. Jogou-se para trás sem delicadeza, e caiu por cima das mudas levemente azuladas, com seus pontinhos brancos... E sentiu o cheiro delas. E rolou. E pouco se importou em sujar aquele seu vestido rodado e impecavelmente branco com um laçarote de fita amarrado por trás, assim como pouco havia se importado com a perda do chapéu. Era um campo lindo aquele... Era tão lindo que a fazia sentir algo inédito: vontade de chorar por estar ali, de chorar por vê-lo. Não seria um choro de tristeza, não. Era como qualquer mistura de ansiedade com satisfação. Era um sentimento muito bom.
---A junção do cheiro do campo com o balançar esporádico das plantas a embalava. Não se sentia cansada para dormir, mas sentia uma vontade de se deitar e de se manter aconchegada. Era preguiça. E então ela abraçou as próprias pernas e ficou assim até não mais escutar o vento morno e o balançar que ele provocava nas folhas. Até não mais sentir aquele tempo bom. Ficou assim até ter sumido por completo o cheiro de anis.
---Um som diferente vinha de algum canto. Esse som não se encaixava com nada ali.


---Suas costelas doíam, e também seu pescoço. Muito tempo ela ficara naquela posição, de mau jeito. Logo à frente, um trem apitava como se nunca tivesse saído dali. Era negro e morto, igual a tudo naquela estação. Sua fumaça era cinza, como a tarde cinzenta que era. Era o seu trem aquele, mas ela não queria se levantar. Doíam as costelas e o pescoço, mas ela não quis sair daquele banco. Não era preguiça. Agora era uma ansiedade má, que literalmente enoja. Que faz revirar o estômago e dá aquela sensação que o chão é gelatinoso e pode, a qualquer momento, desabar. Se ela se levantasse, iria piorar. Sabia disso.
---Mas já era hora de partir, ou o trem iria embora sem ela. Ela não teria como voltar. Não tinha mais para ONDE VOLTAR. Seus pais a haviam mandado para a estação, da estação ela iria para o trem, do trem para um colégio muito distante... Do colégio, só Deus sabe para onde iria...
---Levantou-se, e era verdade tudo o que havia previsto. O enojo só aumentou conforme caminhava para o trem. O estômago saltava dentro dela. Era horrível. O homem que pegou seu bilhete era horrível também. Tinha ele os dentes tortos e disformes. Ela mal conseguiu olhá-lo, tanto que a incomodaram estes dentes...
--- O trem era cor de vinho por dentro. Vinho e verde. Sua cabina era logo ali do lado, e ela estava sozinha nela. Sozinha.
---Pela janela, a vida passava muito rápido lá fora. Será que voltaria algum dia àquele lugar? Era triste vê-lo passar assim, como um borrão de tinta. Era muito triste não poder compartilhar nada daquilo com ninguém também. O trem era muito silencioso. Todos deviam estar dormindo, para poder justificar aquele silencio. Infernal aquela falta de ruído, ruim mesmo.
---Ela desejou não estar mais naquele trem, ou então não estar mais em lugar algum desse mundo. Desejou sumir, ou então nunca ter aparecido, num daqueles momentos de dor pungente que aperta em algum canto e dá raiva de tanto que dói...
---O campo azul agora parecia demasiadamente distante da realidade verde e vinho que encarava agora. Ela então desejou ainda um último desejo antes de se deixar abater por completo: ver o campo novamente, ainda que por poucos momentos. Seria bom apenas saber que ele estava ali... Logo após esse pensamento atrevido, curiosamente, ao passar a mão nos cabelos, encontrou um galinho de anis.
---O verde das paredes do cubículo ficou, assim, mais verde, e a paisagem do lado de fora passou a compensar as angustiantes listras bicolores daquelas paredes do trem.

3 comentários:

silencio disse...

Hey Larissa :D
muito lindo o seu texto, está de parabéns como sempre! Gostei de como você misturou essa sensação de leveza com uma angúsita muito forte, acho que você trabalhou isso bem. Quem não queria ficar naquele campo para sempre? E quem não queria que a vida fosse sempre assim, quando às vezes a gente desperta para a realidade, desperta dos sonhos, do "sono", para lutar contra um mundo totalmente fora da nossa idealização. Mas pode ser que exista um galhinho de anis em algum lugar, para quem conseguir continuar sonhando mesmo em meio a essa realidade dura, um galhinho para nos lembrar que se tivermos um pouco de esperança, vamos chegar a esse campo algum dia... na nossa realidade mesmo, vale dizer!! A vida que tem que valer a pena é essa aqui, então que o comentário não soe como algo religioso ;)

Lindo seu texto. Vou ler os anteriores com mais calma, os que perdi.

=****** do seu fã
:B

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Olá Larissa, tudo ok? Espero que sim.
Fiqui um tempão ausente da região dos blogs e voltei hoje e adorei esse texto, ótima narrativa!
Gosto muito de viajar pelos blogs da vida.
Parabéns!
Beijo.